Um cadinho de anos depois eu soube que tinha uma anestesia que tornava o parto coisa tranquila. Era uma baita de uma agulhada no meio das costas da gente, mas até lá, eu pensava, já vão ter desenvolvido uma anestesia oral sabor tutti-frutti, e se não tiverem eu não vou tomar injeção nas costas, e nem vou parir, e prontocabou-se. (Ah, a juventude, faz tudo parecer tão simples...)
Bom, aí eu cresci, e ninguém inventou de a gente botar ovo (graças a deus!), e nem uma anestesia oral. Popularizou-se, e muito, um tal corte na barriga pra tirar o nenê, mas isso sempre me soou como uma alternativa horrenda - melhor escangalhar as partes como a natureza quis ou meter faca na barriga? Fico de longe com a primeira opção, faca na barriga é coisa de cangaceiro. Uma vez crescida, conheci um cara absurdamente legal e soube que ele ia ser o pai dos meus filhos, filhos estes que eu nunca quis ter, ói que coisa. E a gente falou sobre o assunto, e eu, pasmem!, quis engravidar, apesar do medo. Porque medo era algo muito pequeno pra influenciar uma decisão dessas. Então eu engravidei, fui uma grávida toda serelepe e me preparei aos pouquinhos pra fatídica hora de encarar um parto.
Grávida é aquela coisa: a gente lê descontroladamente, e conversa, e pesquisa. E começa a definir o parto dos sonhos.
O meu era assim: normal, hospitalar, numa sala de parto humanizado, com musiquinha, luz baixa, e cama inclinada que deixava a gente mais na vertical. Natural pero no mucho, sabe? Porque eu não abri mão da anestesia, nem a pau! E não entendia como alguém podia OPTAR por não tomar. Porque era assim: você, mulher, está em trabalho de parto e seu filho vai nascer. Pode doer ou não, você escolhe. OI??? Por que CAZZO alguem escolheria o caminho da dor, me explica? Pra mim era uma escolha absolutamente sem sentido.
Bom, aí eu eu tive quase o meu parto dos sonhos (quase por causa da episiotomia, que eu queria ter evitado). Mas aconteceu o impossível: eu comecei a entender a opção das sem-anestesia. E invejar a experiência de um parto 100% natural.
Pra mim a diferença é a forma de vivenciar o parto. Porque a anestesia dá uma desconectada na gente. Mesmo conseguindo fazer força e sentindo um pouco as contrações, eu perdi a noção do que estava acontecendo lá embaixo. Quando Alice saiu eu não me dei conta, por exemplo. Só percebi quando olhei pra baixo e vi uma uva-passa gigante onde antes era a minha barrigona grávida. E eu perdi as pernas completamente, não conseguia mexê-las nem parar em pé. Minha impressão foi que a experiência do parto perdeu um pouco da intensidade. Li um monte de relatos em que as mães contam que existe uma espécie de transe durante o trabalho de parto, e isso pra mim é um mistério. Eu estava o tempo todo tranquilona, falante, fazendo piada, mas não fiquei completamente absorvida pelo parto. Não me conectei totalmente com o momento, meu corpo, o nascimento, o instinto de bicho que a gente tem escondido em algum lugar dentro da gente. E quando leio um relato de parto natural, me dá um baita orgulho. Eita mulherada porreta!
Pra mim ainda teria um outro lado, o da superação. Essa sensação boa que dá quando a gente tem um medo paralisante mas vai lá e enfrenta. Acho que se eu conseguir um parto sem anestesia vou virar uma satisfação ambulante, com um sorrisão eterno e aquela cara de missão cumprida por essa vida e mais umas três. Pensando assim, me dá vontade de tentar encarar o próximo parto ao natural, na raça, confiando na fêmea selvagem que existe em mim. Mas aí vem o diabinho na minha orelha e pergunta: Mariana, minha querida, quer enganar quem? Porque o fato é que eu sou medrosa. E, cara, tenho tantas outras virtudes mais relevantes, e tantos outros defeitos bem piores, que me deixa ser medrosa, pô! Sei lá se faz sentido eu me cobrar mais isso agora - porque a gente já se cobra tanto nessa vida, né? Então eu me concedo o direito de ser medrosa e fico pensando se realmente preciso (ou quero), como terapia de choque de autoafirmação, encarar um parto natural. De verdade, isso vai fazer de mim uma mãe melhor, uma pessoa melhor, uma mulher mais completa? Meu filho vai ter uma vida mais feliz porque eu não tomei anestesia quando ele nasceu? Provavelmente não. O parto me deixaria orgulhosa, sem dúvida, mas eu já me orgulho de um monte de coisas em mim, então talvez essa eu passe. Talvez. Quem sabe?
***
Hoje, o meu parto dos sonhos seria assim: normal, hospitalar, sem ocitocina, sem episiotomia, anestesia a decidir na hora, a posição que eu escolher, meu filho vindo pro meu colo imediatamente e o cordão sendo cortado só depois de parar de pulsar.
Falar é fácil, mas na prática eu sei que esse "anestesia a decidir na hora" significa que eu vou pedir, ÓBVIO que vou. Porque é preciso preparo para um parto sem anestesia, e uma tolerância à dor que eu não tenho, e uma provável troca de equipe para uma mais "natureba" que saiba conduzir o parto e tranquilizar a parturiente histérica que eu hei de ser. Acontece que não tô nem um pouco a fim de trocar de equipe, adoro meu obstetra e confio nele horrores. A questão é: sem o apoio de gente especializada em parto natural, eu vou dar conta de encarar? Sei lá, acho que não. Provavelmente vou pedir anestesia, com a anestesia não vou conseguir ficar de pé, e aí não vai rolar a posição que eu escolher, e talvez até as contrações diminuam e eu tome ocitocina, e aí as contrações vão doer mais, e dá-lhe mais anestesia... pronto, lá se vai o meu parto dos sonhos, estão vendo? Tchau, parto dos sonhos!
De alguma estranha maneira, eu não ligo. Porque no fundo - e eu fui me dando conta disso agora, à medida que pensava e escrevia o post - o parto dos sonhos nem é tanto dos MEUS sonhos. Sabe? Eu realmente me comovo com partos naturais e admiro quem faça, mas acho que não é pra mim. Não faz parte do meu repertório, dos meus valores, do modo como eu vivo. Eu não sou natureba. Eu não lido bem com dor. Eu não sou corajosa. E eu me adoro mesmo assim (rá!), e não me cobro algo que acho que seria muito custoso - apesar de compensador, sem dúvida.
Mais compensador pra mim é a chegada de um filho e o que vem depois. Não me apego tanto ao "parto dos sonhos", e sim a criar o "filho dos sonhos", ser a "mãe dos sonhos", construir a "família dos sonhos". Pra mim, esses são os investimentos que valem a pena. E, como todos os sonhos, esses já vão me trazer preocupação, frustração e culpa o suficiente, de modo que se eu puder me aliviar de mais uma expectativa, melhor. Um pequeno ato de autoindulgência. Eu mereço. E acho que toda mãe merece.
***
Uma coisa que me tranquiliza quanto a qualquer decisão que eu tome é que eu não tenho o parto como CAUSA (aliás, sou um pouco desconfiada com "causas" em geral, porque daí pra cegueira seletiva é um pulinho. Levar uma causa a sério demais pode fazer a gente parar de ouvir o outro lado e descartar tudo o que não confirme a nossa posição. Impressão minha ou é exatamente o que está acontecendo nessa polêmica toda das vacinas, hein?).
Deixa eu explicar melhor: acho a "causa do parto normal" importantíssima num país que tem uma das maiores taxas de cesárea do mundo. É ótimo que se discuta as diferenças dos partos, que haja informação e estímulo ao parto normal. Então os grupos envolvidos nessa "causa" fazem um trabalho importantíssimo e que ajuda muitas mulheres. Até aí, incrível. Pra mim a coisa desanda se a mulher começar a achar que TEM QUE ter um parto assim ou assado. Em vez de usar a informação de forma libertadora, ela vira escrava de tudo o que aprendeu. Se o parto não for normal (ou natural, domiciliar, na água, etc.) ela acha que fracassou. E isso é cruel demais. Então esse é o meu limite de envolvimento com a "causa" (essa e qualquer outra): eu fico com o pé atrás quando percebo que ela me escraviza mais do que liberta.
Em outras palavras: sou da turma do parto normal, e vou lutar por ele até o ponto que me parecer razoável. Mas não vou me corroer de culpa e frustração se eventualmente precisar de cesárea ou alguma intervenção que preferia evitar. Porque o parto não é um fim, é um meio (ou ainda, com o perdão do trocadilho: é um começo). Não precisa carregar uma carga pesadíssima de expectativas e cobranças. E afinal, faz alguma diferença significativa na vida do seu filho a forma como ela veio ao mundo? Ali, no comecinho, nos primeiros dias, existem sim dados indicando que há formas mais seguras e saudáveis de parir, mas na qualidade de vida geral de um ser humano, a longo prazo, o parto é realmente determinante? Nunca vi dados concretos sobre isso, então eu diria que não (me corrijam se eu estiver desinformada, please!). E se a felicidade do meu filho não está condicionada ao parto, por que a minha estaria? Não, esse peso eu passo. Eu quero é ver meu filho nascer saudável, o resto é resto. Vê lá se eu vou ficar frustrada por cada coisa que não saiu como planejada, gente? Tá doido!
E outra: eu não me julgo competente pra questionar as opiniões de um médico que estudou anos pra fazer o que faz. Um médico de confiança, atenção. Escolhido com cuidado, e com quem me identifico. Pesquisei, conversamos bastante, fechei com ele? Então se ele fala eu acredito, e se não fosse assim estaria louca a essa altura.
Então, na hora do parto, o que ele disser eu acato. E o que EU quiser, o que sentir ali na hora, eu também acato. Não quero ficar me agarrando desesperadamente ao que considero o parto ideal, não quero ser escrava dele. Arreguei na hora H e pedi anestesia? Ok. Tive um parto cheio de intervenções? Ok. Precisei de cesárea? Ok também, fazer o quê? Agora, meu filho correu riscos, ou teve qualquer tipo de sofrimento desnecessário porque eu fiquei batendo cabeça e dizendo eu quero assim, eu quero assim, eu quero assim!? Não, aí não tá ok. Aí o foco passou da criança pra mãe, e o tão sonhado "parto ideal" perdeu o sentido.
Meu humilde conselho? Se informem, barrigudas. Leiam, pesquisem, conversem com mães e médicos, e criem sim o parto dos sonhos de vocês. Façam junto com o médico um plano de parto, deixem muito clara a sua vontade. E, feito isso, relaxem. Não se pode controlar tudo e, no fim das contas, parto bem sucedido é aquele em que filho e mãe estão bem no final. Ponto. Buscar nele a afirmação da nossa qualidade de mãe é autorreferente demais, justo no momento em que a gente mais deveria se doar. Vamos nos preocupar mais com o exercício da maternidade e menos com o parto. Até porque o que realmente define a mãe que vamos ser é o que começa logo depois dele.